Uma missa de domingo em uma capela, uma celebração em campo aberto às margens de um rio e 150 pessoas brutalmente assassinadas. Dois massacres registrados no Rio Grande do Norte e apontados como símbolos da intolerância religiosa de holandeses que dominavam o Nordeste brasileiro em 1645 renderão ao país, 372 anos depois, 30 novos santos - "os primeiros santos mártires do Brasil".
Os chamados "mártires de Cunhaú e Uruaçú" - nomes de duas localidades
da época que hoje correspondem aos muncípios potiguares de Canguaretama e
São Gonçalo do Amarante - foram beatificados no ano 2000 pelo Papa João
Paulo II e serão canonizados neste domingo pelo Papa Francisco.
Os 30 novos santos são os únicos mortos identificados em dois massacres
que deixaram um saldo de aproximadamente 150 vítimas. Por esse motivo,
somente eles serão reconhecidos na cerimônia.
O caso é considerado emblemático, entre outros motivos, porque os
massacrados teriam "dado a vida, derramado o sangue, na vivência de sua
fé", segundo a Igreja.
Em Cunhaú, 70 teriam sido assassinados em 16 de julho de 1645. O
episódio é apontado como retaliação holandesa aos que seguiam a fé
católica e se recusavam a migrar para o movimento religioso protestante
que difundiam, o calvinismo.
O livro "Beato Mateus Moreira e seus companheiros mártires", escrito
pelo Monsenhor Francisco de Assis Pereira a partir de pesquisas
históricas e dados que embasaram a beatificação, afirma que os
holandeses contaram com a ajuda de indígenas para invadir uma capela da
região, fechar as portas e matar quem estivesse dentro, em uma manhã de
domingo.
Quase três meses depois desse episódio, em 3 de outubro, outras 80
pessoas também viraram alvos em outro cenário: às margens do rio Uruaçú,
foram despidas e assassinadas por não terem se convertido ao
protestantismo.
Nem crianças foram poupadas do ataque. Uma delas, com dois meses de vida, foi uma das vítimas, junto com uma irmã e o pai.
Também parte desse segundo grupo, o camponês Mateus Moreira acabou
virando símbolo do martírio porque, no momento de sua morte, teria
bradado: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento". A louvação seria uma
prova incontestável de sua fé, na visão católica. Ele foi morto ao ter o
coração arrancado pelas costas.
A presença da igreja católica no Nordeste já era considerada "marcante"
nessa época, como descreve o Monsenhor Pereira, postulador da causa da
beatificação dos mártires, no livro. "Havia padres seculares (padres
pertencentes a dioceses), numerosos conventos de franciscanos,
carmelitas, jesuítas e beneditinos. Eram mais de 40 mil católicos",
escreve ele.
Os holandeses aportaram na região em 1630. Eles chegaram nesse período a
Pernambuco e assumiram o comando político e militar da área -
estendendo o domínio posteriormente a outras capitanias, inclusive à do
Rio Grande, como era chamado o Rio Grande do Norte.
Os colonizadores teriam perseguido e assassinado adeptos da religião
católica que não aceitaram virar calvinistas. Na mesma época em que, por
meio da Inquisição, a Igreja Católica ainda perseguia, julgava e punia
acusados de heresia.
Adultos, jovens e crianças: quem são os mártires canonizados
A lista de novos santos inclui um total de 25 homens, entre eles dois
padres, e cinco mulheres. Eram 16 adultos, 12 jovens e duas crianças - a
mais nova, o bebê de dois meses de idade.
"A identificação dos que serão canonizados não se dá tanto pelos nomes,
mas também por identificação de parentesco e de amizade (das vítimas)",
ressalta o padre Julio Cesar Souza Cavalcanti, responsável por
encaminhar a canonização dos mártires na Arquidiocese de Natal.
A missa solene em que o papa Francisco vai proclamar a canonização, na
Basílica de São Pedro, em Roma, ocorre a partir das 10h deste domingo,
no horário local (5h no Brasil).
"Do Brasil estamos esperando uma peregrinação em torno de 500 pessoas.
Porém, como temos outras canonizações, cremos que estaremos com a praça
lotada", diz o padre.
A professora aposentada Sônia Nogueira, de 60 anos, estará em Natal, a
mais de sete mil quilômetros de distância da cerimônia, mas em vigília e
"com o coração cheio de gratidão pelos mártires".
Ela diz que, por intermédio deles, pediu "a graça da cura e da
libertação" para o marido, José Robério, que em 2002 começou a enfrentar
as consequências de um câncer no cérebro.
Fortes dores de cabeça levaram o militar aposentado, hoje com 68 anos, ao diagnóstico.
O caminho trilhado a partir desse ponto foi marcado por "apreensão",
mas também pelo que Sônia resume com letras maiúsculas em um texto:
"MILAGRE DA SOBREVIDA!"
A frase foi escrita por ela em um relatório que enviou à Igreja
Católica no Rio Grande do Norte, em 2016, para contar a história do
marido em meio a exames, tratamentos de saúde, cirurgias e momentos de
"fé".
Rezar foi a estratégia fundamental, segundo Nogueira, para que Robério
resistisse à doença, que raramente possibilita sobrevida de mais de três
anos aos pacientes após diagnóstico. No laudo médico que a professora
apresentou para embasar cientificamente o que considera um milagre, o
neurocirurgião que acompanhou o caso de Robério o coloca no rol de
"exceções da medicina", porque ele sobreviveu.
"Já se vão 15 anos e 5 meses desde que soubemos do tumor", diz Sônia,
em entrevista à BBC Brasil. Ela não tem dúvidas: "Foi um milagre. A
medicina foi só um complemento".
Comprovação de milagres não foi exigida no processo
Robério e sua mulher estão entre os mais de cinco mil fiéis que já
relataram à Arquidiocese de Natal "graças alcançadas" por meio dos
"novos santos" do Brasil.
Não foram necessários, porém, milagres para fundamentar a canonização.
"O papa Francisco, quando decidiu pela canonização com a dispensa do
milagre, colocou como um ponto básico (para a aprovação) a antiguidade
do martírio e a perpetuidade da devoção do povo aos mártires", explica o
padre Julio.
Por meio do chamado processo de equipolência, o papa reconhece a
santidade considerando três requisitos: a prova da constância e da
antiguidade do culto aos candidatos a santos, o atestado histórico
incontestável de sua fé católica e virtudes e a amplitude de sua
devoção.
O mesmo processo, em que milagres foram dispensados, foi adotado para a
canonização de São José de Anchieta, outro santo do Brasil.
Para Nogueira e Robério, no Rio Grande do Norte, o milagre que os
mártires teriam realizado é, porém, inquestionável. "Robério foi bem
aventurado no processo, por intercessão deles", justifica a aposentada.
"Como um paciente pode chegar a (sobreviver) 15 anos tomando uma
medicação que segura outros por no máximo três?".
Com dificuldades para falar e andar sem apoio, após a segunda e última
cirurgia que fez, o marido faz coro: "Estava muito doente e os mártires
me levantaram".
"Quem não vai ficar bom tendo um santo dentro de casa?", ele questiona,
referindo- se ao fato de os novos santos terem origem no estado em que
mora.
A canonização deste domingo eleva para 36 a quantidade de santos
considerados nacionais. Até agora, só um deles, Santo Antônio de
Sant'Ana Galvão, mais conhecido como Frei Galvão - santificado em 11 de
maio de 2007 - é, porém, brasileiro de nascimento. Os outros cinco já
oficializados, São Roque Gonzales, Santo Afonso Rodrigues, São João de
Castilho, Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus e São José de
Anchieta, são estrangeiros, mas desenvolveram missões no país. Eles são
reconhecidos por milagres.
Para o padre Júlio, "a grande mensagem com a canonização é de
reconhecer que mesmo pensando diferente, seja em qualquer campo, devemos
sempre respeitar o outro e jamais destruir alguém, de nenhum modo".
Fonte: Portal G1
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