As religiões são tidas como um bálsamo para suportar os percalços e as
angústias da existência e, ao mesmo tempo, buscar um propósito
ético-moral para a vida. Esse é o lado positivo da fé. No reverso da
moeda, ao longo da história as diversas religiões travaram combates
ferozes para conquistar poder e glória, além dos corações e mentes dos
fiéis. Em várias sociedades, a religião chegou a ser mais importante do
que o próprio Estado, até mesmo se confundindo com ele. O resultado
foram numerosas perseguições, massacres e guerras sangrentas sob o
pretexto da fé. Mesmo hoje, com todo o avanço civilizatório que
experimentamos no mundo, ainda existem milhares de fanáticos de todos os
credos dispostos a enquadrar ou, de preferência, a eliminar os
‘infiéis.’
Um personagem é e sempre foi essencial à expansão das religiões,
sobretudo do cristianismo: o pregador. Desde os primórdios, é ele quem
traduz a mensagem muitas vezes cifrada dos textos religiosos para
grandes multidões, buscando convertê-las à sua fé. Quando têm êxito e
suas igrejas florescem, alguns desses pregadores se aproveitam para
acumular privilégios e riquezas. Mas não poucos deles dão exemplos de
abnegação e pobreza. O que caracteriza uns e outros, entretanto, é o seu
carisma, a sua capacidade de eletrizar as grandes massas.
Esse carisma dos pregadores é uma qualidade de liderança, mas também
pode representar um risco à sociedade democrática. Temos vários exemplos
de manipulação das massas por pregadores inescrupulosos ou simplesmente
ensandecidos, cujos resultados foram trágicos, como os suicídios
coletivos de comunidades religiosas na Guiana, em 1978, e nos EUA, em
1993, ou os ataques terroristas com motivação confessional em várias
partes do mundo.
No Brasil, o direito penal não tolera um crime cometido por algum
suposto motivo religioso. O Estado deve reprimir o crime praticado
nessas circunstâncias da mesma forma e com o mesmo rigor com que reprime
o delito cometido em circunstâncias ‘normais.’ Ora, o Brasil é, por
definição constitucional, um país laico, onde vigora a ‘liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
a sua liturgias.’ Talvez por esse motivo, salvo um ou outro serial
killer que, de tempos em tempos, justifica seus atos por ‘desígnios
divinos’, não costumamos ter muitos problemas com crimes cometidos por
motivos religiosos.
Mas recentemente a imprensa noticiou que uma determinada igreja
evangélica, a pretexto de angariar fundos para a compra de um canal de
televisão, teria proposto aos seus fiéis, por intermédio de uma carta,
que, durante os cultos religiosos, ‘se passassem por enfermos curados,
ex-drogados e aleijados’ para assim ‘conseguir convencer mais pessoas a
contribuírem financeiramente.’
Tal fato, obviamente, não pode ser aceito. Afinal, por mais que as tais
‘contribuições financeiras’ àquela igreja sejam, na maioria das vezes,
feitas mediante pequenas doações, é inegável que o conteúdo econômico
amealhado com tal prática é extremamente alto, máximo se considerarmos
que a igreja em questão possui inúmeros templos em diversos Estados.
Pois bem, analisando tal comportamento sob o aspecto eminentemente
penal, de forma fria e sem qualquer preocupação religiosa, tal fato, se
confirmado, pode, efetivamente, ser definido como um crime previsto em
nossa legislação. Sob um olhar inicial, partindo do princípio de que o
‘teatro’ promovido pelos tais falsos ‘enfermos curados, ex-drogados e
aleijados’ serviria como meio para incrementar as doações, fica fácil
perceber que tudo não passaria de uma grande fraude.
Diante de tal hipótese, é muito provável que o leigo, ao menos num
primeiro momento, definisse aquela conduta como crime de estelionato,
cuja pena de prisão pode variar de um a cinco anos de reclusão, além da
pena de multa (artigo 171, caput, do Código Penal). Ledo engano.
O estelionato tem uma característica essencial que o afasta daquela
situação fática, qual seja, para que aquele crime se concretize, é
preciso que a vítima seja pessoa certa e determinada, vale dizer, pessoa
ao menos identificável. Trata-se, o estelionato, de crime contra o
patrimônio de pessoa(s) certa(s) e determinada(s).
Nesse caso, é evidente que o número de vítimas daquele engodo,
verdadeiro ‘teatro’, seria extremamente alto, tornando praticamente
impossível identificá-las uma a uma. Sendo assim, tal fato, caso a sua
prática venha a ser comprovada, não pode ser resolvido pela figura do
estelionato.
Como o número de vítimas seria indeterminado, a fraude eventualmente
perpetrada por pastores e pelos tais falsos ‘enfermos curados,
ex-drogados e aleijados’, cujo fim, na realidade, é o de retirar
dinheiro do povo, poderá ser definida como crime previsto na Lei
1521/1951 (crimes contra a economia popular), mais precisamente na
figura típica do artigo 2º, inc. IX, que dispõe o seguinte:
Art. 2º. São crimes desta natureza:
IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de
número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos
fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer
outros equivalentes)
Pena: detenção de 6 meses a 2 anos, e multa de dois mil a cinquenta mil reais.
Como se vê, as penas previstas naquele artigo, se comparadas com aquelas
do estelionato, são qualitativa e quantitativamente menores. Porém, por
uma questão de tipicidade, a aplicação do estelionato, como dito, não é
a mais adequada.
É bom que se diga que não apenas os pastores, mas também os falsos
‘enfermos curados, ex-drogados e aleijados’ e todos os demais envolvidos
(ou seja, todos aqueles que têm ciência da fraude) poderão ser
responsabilizados criminalmente, nos termos do artigo 2º, inc. IX, da
Lei 1521/51.
Mas, há mais!
Além do crime contra a economia popular, os agentes também poderão ser
responsabilizados pelo crime de associação criminosa (art. 288, caput,
do Código Penal), que substituiu o antigo delito de quadrilha, cuja pena
privativa de liberdade pode variar entre 1 a 3 anos de reclusão.
Como se vê, embora muitos tenham a igreja ou a religião como puro
‘negócio’, fato é que o abuso da crença alheia, mediante fraudes e
simulações, configura crime e pode, de fato, sujeitar seus autores à
pena de prisão.
Este texto foi publicado originalmente no site Congresso em Foco.
Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em direto penal
pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados.
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